Publicado em 03/05/2010

OAB Entrevista

Dr. Cezar Britto entrevista Dr. Luis Roberto Barroso

 

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Intermediação: Claudia Zardo

Dr. Luís Roberto Barroso é parte integrante de uma nova geração de doutrinadores que prometem revigorar o Direito Constitucional nacional com novas ideias e métodos de interpretações. Dentre as características que marcam sua personalidade está o interesse pela defesa intelectual de casos polêmicos. Além de diversos livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, Dr. Barroso é conhecido por ser especialista em Engenharia do Estado e possui grande habilidade na construção de argumentações jurídicas. É formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e advoga desde 1981. Entre outros, cursou Master of Laws (LL.M) na Universidade de Yale, EUA; é doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); professor na mesma universidade e na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).

Especialmente nesta edição, o Presidente da OAB Federal, Dr. Cézar Britto, é o nosso convidado para entrevistar o Dr. Barroso. Confira a seguir.


ESTADO  E CONFLITOS NO JUDICIÁRIO

Dr. Cézar Britto -  O Sr. é defensor e apaixonado pela Constituição, como são todos  os constitucionalistas. Até aí nenhuma novidade, pois ela é um  instrumento de defesa do Estado Democrático de Direito. Mas se o "Centrão" tivesse sido vencedor dos debates e ela fosse conservadora,  o senhor ainda falaria na imodificabilidade dos seus princípios?

Dr. Luís Roberto Barroso - Meu estimado Presidente, é um prazer e uma honra a sua presença aqui. Um constitucionalista, de fato, deve defender a Constituição, mas não qualquer Constituição. É preciso que ela seja democrática. Para que uma Constituição seja democrática, ela deve ser a expressão adequada da soberania popular, da vontade da maioria, manifestada em um momento cívico especial. Além da observância desse procedimento adequado, uma Constituição democrática deve ter conteúdos mínimos essenciais: limitar o poder, proteger e promover os direitos fundamentais do povo, instituir sufrágio universal (todos os que forem maiores e capazes podem participar politicamente) e conter regras razoáveis sobre a alternância do poder. Democrática é a Constituição que fomenta uma sociedade de pessoas livres e iguais. Uma Constituição que siga esta receita é de toda a sociedade e não pode ser apropriada por um único segmento. A Constituição ideal permite que um partido conservador governe de acordo com o seu programa e que um partido progressista governe de acordo com o seu. Ambos, no entanto, têm que respeitar os direitos fundamentais e as regras do jogo democrático.

Dr. Cézar Britto - O Sr. defende ou, em sua opinião, uma nova Assembleia Constituinte pode ser tomada como uma espécie de golpe?


Dr. Luís Roberto Barroso -  Uma Assembleia Constituinte, como bem sugere a pergunta, não é um produto que esteja à disposição em uma prateleira de possibilidades políticas, à disposição dos governantes. Ela constitui o mais relevante fato político na vida do Estado, porque se destina a criá-lo ou reconstruí-lo. O poder constituinte originário é uma energia que irrompe acima das vontades individuais, é um poder coletivo, que aflora como uma força natural e incontida. Só existe poder constituinte originário - e, portanto, só existe Assembleia Constituinte legítima - quando se está diante daquilo que os constitucionalistas denominam momento constitucional, uma grande mobilização cívica em torno de uma nova ideia de Estado, de governo e de sociedade. No Brasil recente, tivemos isso ao longo da década de 80 do século passado, no processo de mobilização popular que antecedeu a convocação da Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição de 1988. O ponto culminante desse processo foi a campanha pelas "Diretas Já", complementado pela derrota do regime militar no Colégio Eleitoral, em 1985. Poder Constituinte é isso: povo na rua, reivindicando um novo tempo, novas bases para o poder, um novo código de relação entre governo e sociedade. Por isso mesmo, Poder Constituinte não se convoca: ele chega quando é sua hora. O ato formal de "convocação" - como foi a Emenda Constitucional nº. 26, de 1986, é um ato de reconhecimento de que a soberania popular deseja se manifestar. Se este quadro que eu descrevi não estiver presente, não se pode legitimamente falar em Assembleia Constituinte. Agora: a modificação da Constituição, no quadro da legalidade vigente, é sempre possível. No Brasil de hoje, não há nada de relevante, da Reforma Política à Reforma Tributária, que não possa ser feito por emenda à Constituição. Por qual razão, então, se pensaria em fazer uma nova Constituição, desprezando o capital político que ela representa em 20 anos de redemocratização estável e bem-sucedida?

Dr. Cézar Britto - Em seu entendimento, a derrota do parlamentarismo, após consulta  popular constitucional, tornou o presidencialismo cláusula imodificável?

Dr. Luís Roberto Barroso - Penso que não. Na minha Proposta de Reforma Política (publicada na Revista de Direito do Estado nº. 3, de 2006, e disponível no sítio institutoideias.org.br) eu defendo o modelo semipresidencialista, tal como praticado na França e em Portugal. O presidente, eleito diretamente, com competências importantes, mas limitadas, que o preservassem da rotina de governo, do varejo político. O dia-a-dia da administração ficaria reservado ao primeiro-ministro, investido por indicação do presidente, com chancela parlamentar. Porém, tendo em vista o plebiscito realizado em 1993, que ratificou a fórmula presidencialista plena, talvez uma ideia própria fosse levar eventual emenda como essa que proponho à ratificação popular, mediante referendo. Aí, uma vez aprovada, não haveria questionamento possível quanto à sua legitimidade.

Dr. Cézar Britto - A permissão de mandatos eleitorais, sem a barreira da proibição da reeleição, é  constitucionalmente possível?

Dr. Luís Roberto Barroso - Acho que pode até ser possível, mas é indesejável. Tendo em conta a tradição latino-americana, talvez se possa até construir o argumento da inconstitucionalidade. A interpretação constitucional é uma atividade jurídica, mas ela não é imune à História, à Filosofia Política e à Ética. Se há risco democrático envolvido, o intérprete não pode desconsiderá-lo. Não há ditadura boa. Nem a dos nossos amigos ou de quem eventualmente defenda as nossas próprias ideias. Nessa matéria de reeleição, há um bom exemplo. Nos Estados Unidos não havia uma limitação expressa à reeleição, mas havia algo como uma regra implícita de que uma reeleição era o máximo admitido. No entanto, no entre-guerras, Franklin Roosevelt exerceu um total de quatro mandatos (uma eleição e três reeleições). Depois disso, foi aprovada uma emenda à Constituição americana limitando a reeleição a um único mandato sucessivo. Eu, pessoalmente, não tenho muito gosto sequer por uma reeleição. Só tenho dúvida se, uma vez consolidada esta fórmula no Brasil, após as reeleições de Fernando Henrique e Lula, se se deve voltar atrás. Às vezes, pior do que não se ter o modelo ideal é passar a vida sem deixar que nenhuma fórmula se consolide.

Dr. Cézar Britto - Qual é a posição do Sr. diante do mais recente conflito entre os Magistrados de Primeira Instância, além dos líderes de outras categorias, e parte dos integrantes da Corte Superior?

Dr. Luís Roberto Barroso - Minha posição é a seguinte: o sistema punitivo no Brasil - aquele que começa no inquérito policial, passa pela denúncia do Ministério Público, o julgamento pelo Judiciário, a execução penal e o sistema penitenciário - está desarrumado. Está desarrumado do ponto de vista doutrinário, normativo e filosófico. E isso se manifesta na jurisprudência, que passa sinais contraditórios para a sociedade. A sociedade brasileira não está satisfeita com esse sistema. Não se trata de se ter uma posição punitiva ou garantista, mas de se desenvolverem bases comuns de argumentação, à luz de princípios e fins adequadamente debatidos e definidos. Quando pessoas esclarecidas e bem-intencionadas divergem na profundidade verificada nesses episódios invocados pelo nosso Presidente da OAB, é sinal de que falta um denominador comum que propicie a interlocução construtiva. Conflito é falta de interlocução. Pois bem: precisamos repensar e reconstruir esse sistema, levando ao debate público a definição de um modelo de Direito Penal, de processo penal e de execução penal que possa servir adequadamente ao Brasil.